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  • Dia Mundial da Saúde Mental "É tempo de priorizar a saúde mental no local de trabalho"

    10 de Outubro de 2024

    Diretor Clínico do ISJD, o Médico Psiquiatra, Dr. Vítor Cotovio em entrevista

    Na busca por um ambiente de trabalho mais saudável e produtivo, a saúde mental emerge como uma prioridade inadiável. Nesta entrevista, o Dr. Vítor Cotovio, referência na área da saúde mental em Portugal, partilha a sua perspetiva sobre a importância da literacia em saúde mental e o impacto que esta pode ter para combater o estigma. Aborda os desafios e as oportunidades que surgem na promoção do bem-estar emocional no local de trabalho e, através das suas experiências e insights, oferece uma visão abrangente sobre como podemos transformar a cultura organizacional e cuidar melhor dos colaboradores, criando um espaço onde todos se sintam apoiados e compreendidos.

     

    Qual a importância de se assinalar o Dia Mundial da Saúde Mental?

    Faz todo o sentido assinalar o Dia Mundial da Saúde Mental. No entanto, há sempre o risco de, ao assinalar o dia disto ou daquilo, parecer que só nessa altura devemos preocupar-nos com esses temas. Contudo, se não marcássemos o dia, também não chamaríamos a atenção das pessoas para essa preocupação. Assim, a partir de um certo momento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu assinalar este dia, e parece-me uma boa iniciativa, pois a saúde mental deve ser uma preocupação transversal a todas as políticas, como os políticos costumam dizer.

    Apesar de o Dia Mundial da Saúde Mental ser anterior à pandemia, os políticos reconhecem que esta veio intensificar a preocupação com a saúde mental, para o bem e para o mal. Não deve ser uma moda, embora haja o risco de se tornar isso em algumas organizações. Desde a pandemia, muitas empresas começaram a criar programas de bem-estar e saúde mental para os seus colaboradores.

    Este ano, o tema do Dia Mundial da Saúde Mental é precisamente "É tempo de priorizar a saúde mental no local de trabalho". Tornou-se claro que a preocupação com o bem-estar psicológico impacta não só em doenças como o burnout, depressão e ansiedade, mas também na produtividade e rentabilidade das empresas. Passou a haver uma preocupação real com a saúde mental nas organizações.

    Eu costumo dizer que, quando criamos programas de bem-estar nas empresas, é uma questão de preposição: não é para, é por. Quero dizer com isto que muitas vezes as empresas criam programas para que as pessoas produzam mais. No entanto, a questão não é para as pessoas produzirem mais, mas sim por terem bem-estar. Ou seja, quando criamos um programa apenas com o objetivo de aumentar a produtividade, temos um propósito utilitário: “faço isto para aquilo”. No entanto, quando as pessoas têm saúde mental e bem-estar, naturalmente estarão mais motivadas e disponíveis para se comprometerem, e, como consequência, poderão produzir mais.

    Ainda que, de facto, a falta de saúde mental nas empresas tem um impacto enorme, não só individualmente, mas também ao nível económico e social de um país. A OMS estima que são perdidos 12 mil milhões de dias de trabalho por ano devido a depressão e ansiedade, o que se traduz em elevados índices de absentismo. A Universidade de Warwick, no Reino Unido, por outro lado, demonstrou que funcionários felizes são 12% mais produtivos.

     

    Qual a relação do ambiente organizacional e o bem-estar das pessoas que lá trabalham?

    Sabemos que as gerações mais jovens dão maior importância à flexibilidade no trabalho e à relação entre o trabalho, a família e o tempo pessoal. As empresas que querem atrair e reter talento precisam de ter essa preocupação. Nas políticas atuais, fala-se muito de "work-life balance" ou "work-life integration". O work-life balance refere-se à divisão de tempo entre trabalho e vida pessoal, enquanto o work-life integration procura integrar estas áreas, porque a vida é mais assim. A questão é como criar esse equilíbrio sem prejudicar as pessoas ou as empresas.

    Kets de Vries, um psicanalista e especialista em liderança, criou o conceito de "organizações autentizóticas", ou seja, organizações que equilibram o trabalho com a vida familiar. A palavra vem do grego e junta authenteekos (autenticidade) com zoteekos (preocupação com as pessoas). Assim, o conceito de work-life balance já existia antes.

    Muitas vezes, as pessoas entram nas empresas pelas suas competências técnicas, mas saem por questões relacionais ou de caráter. Um estudo muito interessante mostra que a atitude dos líderes afeta 69% da saúde mental dos colaboradores, mais do que a de um terapeuta ou médico. O único impacto comparável é o do companheiro. Ou seja, a atitude de um líder tem um efeito muito profundo na saúde mental dos colaboradores.

    Há vários tipos de liderança: servidora, amplificadora, compassiva… Mas as que considero mais adequadas atualmente são as que chamo de “liderança de triplo E, com triplo foco”.

    Liderança de ‘triplo E’ significa que a liderança deve ser ética, empática e estética. Ética, com preocupação pelos valores e sua prática. Empática, com a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. E estética, valorizando os sentidos e a beleza. Mas, para ser credível, precisa ser coerente.

    Javier Gomá criou o conceito de exemplaridade, que gosto bastante. Exemplaridade é a consciência do impacto que o meu exemplo tem nos outros, e a responsabilidade que isso acarreta. Este conceito vai além de apenas dar o exemplo — trata-se de ter a plena consciência de como influenciamos os outros, o que é diferente de manipular.

    O "triplo foco" refere-se ao foco interno, externo e nos outros. O foco interno diz respeito ao autoconhecimento, autorregulação e autoconsciência. O foco externo é a preocupação com os objetivos e resultados. E o foco nos outros refere-se à empatia e à capacidade de avaliação social.

    Eu costumo dizer que vivemos numa sociedade de 5V + 1: Velocidade, Volume, Volatilidade, Voracidade e Vacuidade, que acabam por levar ao Vazio existencial, ao desespero e à angústia. Numa sociedade assim, é urgente que as lideranças sejam éticas, empáticas e até estéticas.

     

    Quanto à campanha "1 em cada 5", acha que a população portuguesa tem noção de que 1 em cada 5 pessoas sofre de doença mental?

    Acho que, gradualmente, as pessoas vão ganhando mais consciência, principalmente porque a pandemia trouxe uma mudança significativa nesse sentido. Passou a haver muito mais pedagogia e a narrativa sobre a saúde mental começou a chegar a mais pessoas.

    Relativamente às doenças mais complexas, ainda há dificuldade em compreendê-las. Por exemplo, as pessoas estão mais familiarizadas com depressão ou ansiedade porque são problemas mais próximos — talvez tenham um vizinho, um primo ou um cônjuge que já tenha passado por isso. No entanto, quando se trata de situações mais graves, como a esquizofrenia ou a perturbação bipolar, as pessoas afastam-se mais, pois são condições que não entendem, e que muitas vezes parecem bizarras ou fora do comum. Embora essas doenças não sejam contagiosas, a falta de compreensão cria uma barreira.

    Falando do "1 em cada 5", estamos a referir-nos a doenças mentais de uma forma geral. As doenças mentais graves, como a esquizofrenia, têm uma incidência percentualmente menor — cerca de 1% da população — o que é relativamente baixo. Quando olhamos para doenças mentais comuns, como a depressão e a ansiedade, vemos números muito mais elevados e preocupantes. Portugal, por exemplo, tem das taxas mais altas da União Europeia, em termos de prevalência destas condições, comparando, por exemplo, com a Irlanda.

     

    De que forma podemos aumentar a literacia e a consciência sobre a importância de procurar ajuda quando os primeiros sinais surgem e ainda não são reconhecíveis?

    Campanhas como esta são um bom começo. A literacia em saúde mental é essencial tanto para a prevenção quanto para a promoção da saúde mental. Faz parte de uma estratégia para combater o estigma associado a estas doenças. Outra é ajustar a legislação às necessidades reais das pessoas, e uma terceira, muito importante, é o contacto direto com pessoas que vivem com doenças mentais e que podem partilhar as suas experiências positivas.

    Esse tipo de testemunhos, de pessoas que falam na primeira pessoa sobre o seu percurso de recuperação, tem um impacto enorme. A isso chamamos "recovery" em saúde mental: o reconhecimento de que, mesmo com uma doença, é possível seguir um caminho de recuperação e continuar a viver uma vida plena. Testemunhos como o de António Horta Osório, por exemplo, que assumiu publicamente que teve um burnout, fazem toda a diferença. Ao partilhar a sua experiência, ele não só ajudou a desmistificar o problema, como também impulsionou a criação de programas específicos na banca internacional para prevenir e lidar com questões de saúde mental.

    As campanhas de literacia têm de ser bem feitas, curtas e esteticamente apelativas, para captarem a atenção das pessoas. Este é um passo crucial, especialmente em saúde mental, onde a literacia tem um impacto ainda maior.

    Em Portugal, existe uma certa dificuldade em discernir o que constitui uma boa informação, especialmente no que diz respeito à saúde mental. Fazer uma pesquisa rápida na internet pode levar a interpretações erradas, e a área da saúde mental é particularmente vulnerável a isso. Muitas vezes, as pessoas chegam ao consultório e dizem: "acho que tenho um bocadinho de doença bipolar", como se essa condição pudesse existir "aos bocadinhos". Este tipo de mal-entendidos, aliado ao facto de alguns diagnósticos estarem na moda, leva as pessoas a associar um diagnóstico à sua identidade.

    Diagnósticos como "borderline" ou "bipolar" são frequentemente mencionados como se fossem desejáveis, quando na verdade são condições que exigem uma avaliação clínica rigorosa. Cabe aos profissionais de saúde mental ajudar a desconstruir estas noções erradas. A literacia em saúde mental passa por proporcionar acesso a informação fundamentada e baseada em evidências científicas, promovendo assim uma compreensão adequada das condições e dos tratamentos disponíveis.

    Dentro das organizações, conseguimos perceber quais são aquelas que, de forma genuína, criam programas de bem-estar porque realmente acreditam neles. Não basta ter programas e intervenções; é preciso que exista uma cultura e uma política de bem-estar verdadeiras. Não é só criar bem-estar para um fim utilitário, é criar bem-estar genuíno.

     

    Como podemos ajudar alguém que parece estar a caminho de uma doença mental?

    Existem duas ações fundamentais que podemos tomar. Primeiro, é importante que a pessoa sinta que pode confiar em nós, sem medo de que o que nos contar possa ser usado contra ela. Ou seja, devemos ser empáticos e confiáveis, criando um ambiente de apoio.

    No contexto das organizações, é necessário que os Recursos Humanos estejam preparados para lidar com estas situações. Ter um bom ouvinte na equipa é positivo, mas muitas vezes não é suficiente. É essencial que haja uma estrutura montada, seja interna ou em parceria com serviços externos, que permita o encaminhamento da pessoa para o apoio necessário. Idealmente, os recursos de saúde mental devem ser acessíveis de forma rápida, e não com longos tempos de espera.

    A dinâmica ideal passa por uma relação entre um bom ouvinte dentro da organização e uma política de Recursos Humanos voltada para o bem-estar. Deve existir uma ligação forte com os serviços externos para garantir que o colaborador pode receber a ajuda de que precisa, sem esperar meses.

     

    Em relação ao estigma, sente que tem havido alterações? E como podemos combatê-lo?

    Uma das melhores estratégias para combater o estigma passa precisamente pela literacia em saúde mental. O estigma é construído com base em estereótipos, preconceitos e exclusão. Por exemplo, o estereótipo de que as pessoas com doença mental são agressivas ou irresponsáveis cria preconceitos que resultam no seu afastamento. A literacia ajuda a desconstruir estas ideias, mostrando, por exemplo, que pessoas com doenças mentais não são mais agressivas ou preguiçosas do que outras.

    Para combater o estigma, é fundamental que as pessoas tenham acesso a informação correta e, ainda mais importante, que tenham oportunidade de contacto com quem vive com uma doença mental. O contacto direto ajuda a desmistificar os preconceitos. Muitas vezes, quando as pessoas visitam instituições como a Casa de Saúde do Telhal, percebem que a realidade não corresponde aos estereótipos que criaram. O contacto é tão ou mais importante do que a simples informação.

     

    Qual é o contributo do Instituto São João de Deus na saúde mental dos portugueses?

    O Instituto São João de Deus é uma instituição de grande dimensão em Portugal e desempenha um papel fundamental no tratamento de doenças mentais graves. Temos muitas vagas de internamento e consultas para tratar casos que muitas vezes outras instituições não conseguem ou não querem tratar. Como estamos habituados a lidar com doentes de maior complexidade, temos o desafio de não esquecer os casos de baixa complexidade, como depressão e ansiedade, que afetam diretamente o bem-estar e produtividade das pessoas.

    Também temos de estar atentos à nossa própria saúde. Cuidar de doentes com alta complexidade aumenta o risco de burnout entre os profissionais. É fundamental que criemos estratégias para promover e prevenir a saúde mental dos nossos colaboradores. Quem cuida de doentes graves pode sofrer um impacto maior no seu próprio bem-estar e saúde, e este é um desafio que não podemos ignorar. Todos nós, cuidadores incluídos, devemos estar conscientes de que também podemos adoecer e que precisamos de cuidar de nós mesmos para continuarmos a cuidar bem dos outros.

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